"Tem olhos, mas não vêem." (Salmo 115 b)
Uma das características da nossa geração é incapacidade de ver. Mas uma vez vamos usar como exemplo esse período triste de pandemia que vivemos. Nosso país ja passou de 400 mil mortes por causa da Covid-19 e muita, mas muita gente jura que não é nada disso. "Não é isso tudo aí que dizem", dizem. Existe um nome para esse fenômeno: negacionismo. O negacionismo pode ser muito bem definido como a capacidade de não ver mesmo tendo visão. É um fenômeno incrível que vem ganhando cada vez mais força. Parece que pra fugir de uma realidade muito dura, criamos esse mecanismo em nossa mente. Mas esse mecanismo não serve pra nada, aliás, serve para trazer confusão e desinformação. O negacionismo é a fé na incredulidade. Imagens de esculturas não podem ser negacionistas, porque não podem ver mesmo. Nós podemos e escolhemos não ver.
Mas o negacionismo tem várias vertentes. Existem os negacionistas da necessidade alheia, por exemplo. Vemos pessoas morrendo de fome, podemos ajudar... e o que fazemos? Fingimos que elas não existem. São os invisíveis da nossa sociedade. Estão lá todos os dias e bem visíveis, mas não os vemos. Temos olhos, mas não vemos. Ainda falando de Covid, nunca tanta gente ultrapassou a fronteira da miséria. É muita gente passando fome, muita gente morrendo de fome. Nossa dispensa, se não está lotada, tem um pouco mais do que precisamos. Esse "um pouco mais" já é suficiente para pelo menos evitar a morte de alguma criança. Nossa visão é seletiva. Para os nossos a visão é plena, para outros ela é turva ou nula.
Jesus curou muitos cegos e por trás de cada uma dessas curas têm um ensinamento sobre a falta de visão dos que vêem. Jesus ensinava que o cego ali não era exatamente o que foi curado, mas àqueles que estavam aparentemente sãos.
Em João 9, Jesus cura um cego de nascença. Era de costume que as pessoas fossem até Jesus clamando por um milagre, mas nessa ocasião o próprio Jesus que foi diretamente ao homem e lhe concedeu essa graça sem que ele pedisse. Na verdade, aquele homem estava ali há anos e nem tinha mais a pretensão de ver, o que ele queria mesmo era que as pessoas dessem esmolas para que ele tivesse o que comer naquele dia.
Os discípulos perguntaram a Jesus quem foi que pecou para aquele homem estar naquelas condições: ele mesmo ou os seus pais. Jesus prontamente respondeu que não era culpa de ninguém, mas que aquilo aconteceu "para que a obra de Deus se manifestasse na vida dele"(v.3).
A cegueira dos discípulos:
Os discípulos não estavam preocupados com a situação do homem, mas queriam saber a origem da sua condição. Ali estava o cego e ali estava Aquele que poderia fazer o cego ver, contudo a visão dos discípulos estava voltada para o pecado, era tudo o que eles conseguiam ver. Jesus via naquele homem uma obra de Deus, os discípulos viam uma consequência do pecado. A religiosidade causa esse tipo de cegueira. Quantas vezes julgamos uma pessoa pelo erro cometido. "Essa não é aquela mulher que traiu o marido?", ou então: "Hoje é aniversário do José, o ex presidiário". A religião rotula, o evangelho ama. A visão da religião é limitada, a visão do evangelho transcende qualquer problema aparente. Os discípulos viam alguém que estava naquelas condições porque merecia estar. Como é cruel a religião as vezes! Quantas vezes já ouvimos: "olha, essa irmã só vive em provação, alguma coisa ela fez, alguma coisa têm aí.". É isso que o religioso vê. Estão cegos espiritualmente. Têm olhos, mas não conseguem ver.
Após Jesus curar aquele homem, ao invés de haver festa naquele lugar, havia incredulidade. Todos conheciam aquele homem, pois ele vivia ali muitos anos no mesmo lugar pedindo esmolas. Porém, quando ele apareceu são, aquela nova realidade era grande demais para as pessoas aceitarem com normalidade. Então elas optaram pelo negacionismo.
A cegueira do povo:
"Seus vizinhos e os que anteriormente o tinham visto mendigando perguntaram: 'Não é este o mesmo homem que costumava ficar sentado, mendigando?' Alguns afirmavam que era ele. Outros diziam: 'Não, apenas se parece com ele'. Mas ele próprio insistia: 'Sou eu mesmo'. 'Então, como foram abertos os seus olhos?', interrogaram-no eles." (V. 8, 9 e 10). O incrível fenômeno negacionista não é de hoje. Os vizinhos do homem o viram são e ao invés de ficarem felizes, negaram o ocorrido mesmo o homem dizendo "sou eu mesmo". Por que isso? Isso é mais comum do que podemos imaginar. É quando a realidade é absurdamente maravilhosa e nós não conseguimos vê-la. Nem todo mundo está pronto para lidar com o absurdo. Umas das nossas maiores dificuldades na nossa relação com Deus é lidar com o absurdo, com o sobrenatural. Nossa visão está irraizada nesse mundo e quando é necessário lidar com coisas extraordinárias nós desenvolvemos a cegueira pelo inexplicável. Era inexplicável aquele homem estar vendo para aqueles vizinhos. Eles queriam uma explicação e ao mesmo tempo nenhuma explicação os faria crer naquilo. Chegaran ao ponto de chamarem os pais do homem para provarem que ele era mesmo o homem que eles conheciam. Mas quando a visão é limitada, nem a prova mais palpável é crida.
A nossa visão limitada faz com que a gente reproduza frases do tipo: "é muito bom para ser verdade", ou "alegria de pobre dura pouco". Na verdade, Deus é muito bom e é verdade, e a alegria do pobre pode durar muito no Senhor! Mas essas são verdades grandes demais para serem cridas. O fato da nossa relação com Deus ser limitada é que nós adaptamos Deus à nossa visão limitada e não deixamos Deus tranformar a nossa visão à realidade Dele.
Um exemplo é como lidamos com o amor de Deus. Nada é mais absurdo que o amor de Deus por nós. Primeiramente porque ele é Deus e nós pecadores. Ele não precisa de nós e nós precisamos Dele. Mesmo assim Ele enviou seu Filho ao mundo para morrer por nós. Que absurdo esse amor! Tão absurdo que insistimos em ignorar ou relativisar.
"Deus me ama, mas..."
"Eu creio que Jesus morreu por mim, mas quando eu peco ele não quer mais saber de mim."
"Ele morreu só pelos santos."
"Ele ama, mas eu nunca vou me perdoar pelo que fiz."
Essa é a nossa visão limitada do amor de Deus. Declaramos que cremos nele, que entendemos a dimensão desse amor, mas continuamos agindo como se não fosse tão grande assim. Isso é porque nós estamos com Deus, mas nossa visão limitada não nos deixa vê-lo como Ele é. É como se Deus dissesse "nada te separará do meu amor" e nós respondessemos "obrigado, mas o Senhor sabe que não é bem assim". É uma das grandes falhas da igreja, não aceitar o absurdo e imensurável amor de Deus. Temos olhos, mas por não sabermos lidar com o absurdo, não vemos.
Após isso o homem foi levado à presença dos Fariseus que começaram a interrogálo. É impressionante como que um homem que acabou de receber uma dádiva do céu teve que ficar dando explicações para tanta gente. Ao mesmo tempo que o homem estava extasiado por poder ver pela primeira vez, estava assustado e acuado com todas aquelas perguntas.
A cegueira dos Fariseus:
Os Fariseus começaram a interrogar o homem com um tom intimidador. Queriam saber quem o curou. Eles sabiam que Jesus curava, o problema deles ja não era de fé, mas uma questão política. Jesus estava chamando a atenção para si e isso causava inveja neles que eram vistos e respeitados como homens de Deus. Deus para eles significava status e Jesus atrapalhava nisso. Essa religiosidade é ainda mais tóxica que a dos discípulos. Os discípulos eram ignorantes e acreditavam em um Deus punitivo. Os Fariseus adaptaram às Escrituras para o seu bel prazer e oprimiam todo aquele que se opusesse. O Deus que eles diziam defender estava diante deles curando um homem cego de nascença, e tudo o que eles viam era um rival político. É quando a igreja se torna um partido político em nome de Jesus. Quando falam do evangelho para esses líderes, eles rechaçam, porque o que importa é o poder e reconhecimento dos homens. Não tenho dúvida que se Jesus estivesse no nosso meio hoje, muitos dos nossos líderes o ignoraram ou pior, o perseguiram por pregar o amor. Eles estão completamente cegos e só enxergam o poder.
Então, Jesus curou um cego fisicamente em João 9, como curou também Bartimeu em outra ocasião e inúmeros outros cegos, para que ficasse claro que o problema da visão está além da nossa capacidade biológica de ver, mas, porque mesmo vendo, não vemos coisa alguma. Como os discípulos que só procuravam um motivo para a cegueira daquele homem, como os vizinhos que mesmo com todas as evidências não conseguima lidar com aquela realidade absurda e os os fariseus que só conseguiam ver o poder e mesmo se Deus passar diante deles, eles transformarão Deus em um adversário do seu egoísmo. A diferença é que os "fariseus" de hoje em dia viram que é mais vantagem fazer de Deus um aliado, ou seja, um cabo eleitoral da sua auto exaltação. Com isso, usam da fama do Seu nome para se beneficiarem. Têm olhos, mas não vêem.
Nós como igreja devemos ter em nossos lábios a oração de Bartimeu: "Filho de Davi, tem compaixão de mim". Para que ele abra a nossa visão humana, e assim o necessitado não seja mais invisível para nós. E para que também abra a nossa visão espiritual, e assim possamos ver o Seu infinito amor e sermos constrangidos por ele.
Que Deus te abençoe.
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